quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Waterflies: etno-jazz experimental

Numa fusão de sons e geografias, o jovem quarteto albicastrense leva jazz, folk e música erudita ao encontro com a Natureza









Por entre acordes soltam-se ritmos rápidos ou melodias oníricas
(imagens
: Jorge Costa/Multipistas)

Tal como na geografia, também na música é possível estabelecer pontes com latitudes distantes. Algo comum no universo das músicas do mundo, o diálogo entre orientes e ocidentes ganhou novo fôlego com os Waterflies (ver fotos e perfis no MySpace e Facebook) uma das mais jovens formações da Beira Interior a cruzarem estilos bem definidos com abordagens diferentes e composições próprias, e parte integrante do ciclo de renovação da cena musical albicastrense (ver texto de opinião), feito de formações com um background mais diversificado, personalidade forte, atenção profunda às suas raízes ou influências e um universo sonoro único.

“Os Waterflies começaram com uma tentativa de um concerto no conservatório no final do ano lectivo, em 2008. Decidi arranjar mais alguém que viesse tocar comigo, mas algo mais inovador para além dos instrumentos que costumava tocar, até que contactei o João [Lugatte] e o convidei para vir a Castelo Branco tocar comigo e tentar fazer um concerto diferente”, conta ao MULTIPISTAS - MÚSICAS DO MUNDO João Ferreira, o precursor do grupo. “Após esse concerto, tentámos formar o grupo e arranjar um nome que nos definisse, e convidámos mais dois elementos - o João [Apolinário] e a Beatriz - que agora é a formação completa”.


Ao jazz de sabor étnico junta-se um toque delicado de blues 

Escolhido o nome - junção das palavras waterfall (cascata) e butterflies (borboletas) -, em 2008 João Ferreira (piano e sintetizador), João Lugatte (bateria e percussão), Beatriz Jorge (flauta transversal) e João Apolinário (clarinete e guitarra) deram vida à ‘cascata de borboletas’. Projecto em que os músicos de Castelo Branco e Viseu exploram sonoridades ligadas à Natureza e as combinam com o jazz ou com a música étnica. A aventura experimentalista arrancou no seio da música erudita, mas foi-se encontrando com outros géneros e linguagens. 

“Essa fusão do nome passa para a música, e dessa forma tentamos reflectir com os nossos instrumentos uma relação próxima com a Natureza. Nós temos uma formação clássica, que muito pouco tem a ver com o que estamos a fazer. Do processo criativo à escrita e execução, é evidente que temos presente essa parte da música erudita”, esclarece João Ferreira. “Agora, desde o início que a nossa aventura foi tentar chegar à música ligeira, seja jazz, rock ou quase metal. E isso tem tudo a ver com a estrutura da música, a instrumentação e a variedade tímbrica que temos”. 


“Todos derivamos de ambientes musicais diferentes, apesar de termos cursado no conservatório, mas cada um tinha as suas influências musicais. O nosso desafio foi criar uma comunhão de gostos para tentarmos elevar um bocadinho o que para nós era já um panorama monótono que era a música clássica”, acrescenta João Apolinário. “Queremos chegar mais além, sem perder a base, mas tentar inovar à nossa maneira”.



Aos sopros acrescenta-se a força das percussões

Desafio em que os Waterflies procuram ultrapassar antíteses sonoras e equilibrar mundos divergentes. Das adaptações de temas de Nina Simone ou Yann Tiersen às influências de Avishai Cohen, Anathema, Villa-Lobos, Piazzolla, Portishead ou Sigur Ros, o resultado é uma mistura que o grupo define como ‘etno-jazz experimental’, e onde também há lugar para as referências nacionais.

"Em Portugal, há muito boa música a ser feita. Felizmente, cada um tenta criar coisas novas, o que acho muito bom. Maria João e Mário Laginha não podem deixar de ser uma referência para o grupo porque eles são dois músicos muito versáteis e que têm uma música muito versátil”, diz João Ferreira.


“Tentamos manter-nos dentro de um género agradável, mas ao mesmo tempo fugir e deambular pelas improvisações e motivos melódicos que ficam no ouvido e mais curtos que o jazz nos pode oferecer. E usando a música de fusão, vamos conseguindo chegar ao nosso som próprio”, justifica João Apolinário. 



O grupo, em Castelo Branco, na apresentação do álbum de estreia

“Esse som, mais conciso, que procura sempre ter como fundamento o jazz e não a música erudita, conseguimos atingi-lo há bem pouco tempo. Obviamente que não somos os criadores de um género. Outros grupos tentam fazer isto, e a música de fusão está cada vez mais na moda. Contudo, há características que se mantêm, e isso acaba por definir o nosso género, reitera João Ferreira. “Sendo música de fusão, tivemos de estudar muito bem o que haveríamos de incluir nas músicas.

“As músicas surgem todas num ponto de vista temático. Cada tema surge de forma individual, se bem que acaba por fazer sentido num todo. O nosso objectivo é recolher pequenos pedaços e ideias e desenvolvê-las, mas numa linha de orientação muito próxima, lembra João Apolinário.

“Todas as músicas funcionam de maneira diferente. Podemos usar vários instrumentos para conseguir o que queremos. A variedade de timbres e cores é tão grande. Só a percussão é mesmo um mundo”, insiste João Ferreira.





Apesar do experimentalismo, permanece a marca da música erudita

Das liberdades do jazz aos prazeres da folk, são estilos que se fundem com novas melodias e instrumentos. Uma palete alargada de cores e ritmos visíveis em composições que se ligam numa história onde a Natureza é a protagonista principal. Universo combinado com a suavidade da água, a delicadeza de uma caixa de música ou a presença ainda tímida da voz. 

“Só temos uma música com voz no EP porque foi a minha primeira experiência em música ligeira. Estava habituada a cantar, mas só no conservatório, com árias de ópera e coisas do género. Ainda estou numa fase de adaptação à minha voz em música ligeira, em termos de timbre o que posso usar e é mais característico, o que é completamente diferente daquilo que é utilizado na música erudita”, explica Beatriz Jorge, o único elemento feminino da formação. “Mesmo em termos de técnica, é completamente diferente, e é uma adaptação que demora tempo”.








De cima para baixo, João Ferreira, Beatriz Jorge, João Apolinário e João Lugatte

Em 2008, os Waterflies apresentaram-se em alguns concertos mais intimistas com os seus primeiros originais. Em 2009 foram uma das dez revelações na estreia do “CoolJazz Talents”, em Cascais. Ano em que desafiaram o público a dar voz a músicas onde piano, flauta e clarinete abrem caminho às percussões ("A Ilusão Imperial", de Pedro Tavares, foi o texto seleccionado no concurso Escritores e Poetas).

Os sete originais do EP de estreia “E Se A Lua Caísse?” - "West", "Pássaro Negro (De Voo Livre)", "Ilusão do Mar", "O Voo do Tempo", "Oryantal", "I Wish I Couldn't" e "E Se A Lua Caísse?" - e alguns temas novos - como "African Sun" - foram apresentados em Setembro no Cine-Teatro Avenida de Castelo Branco. Disco caseiro, amadurecido ao longo de dois anos, e com que o grupo se quer dar a conhecer ao grande público. 


“O nosso primeiro trabalho discográfico é também a manifestação da nossa vontade de trazer ao público novas sensações”, argumenta João Apolinário. “Quem vier ver os nossos espectáculos poderá esperar uma nova abordagem ao que é um concerto, pelo menos na região, porque as pessoas estão habituadas ao género mais clássico de concerto e pretendemos inovar nesse aspecto com luzes, cenários, novas ideias musicais e uma nova forma de interagir com o público que pensamos ser bastante inovadora e interessante”, conclui o músico.

Um convite aos sentidos e a um reencontro também com a terra e com o fogo num voo rasante pelos acordes e palavras dos Waterflies.



Os Waterflies, durante a entrevista que deram no Cine-Teatro Avenida

VÍDEO...↓
Entrevista waterflies (Beira TV)

EXTRA...↓
Tema “I Wish I Couldn't” (YouTube)

Discografia:

2010 - "E Se A Lua Caísse?"

Jorge Costa

domingo, 19 de setembro de 2010

Castelo Branco: o regresso da cena musical

Velha Gaiteira em Alpedrinha no Chocalhos 2010
Na última década, com grupos como os Norton, Jaguar, Musgo, Izumi ou Purpe Angel, Castelo Branco tornou-se uma espécie de meca regional do idie rock. À excepção de um ou outro caso, pouco ficou desse fervilhar irreverente de criatividade underground. As surpresas no panorama alternativo local vieram entretanto de outros géneros, com formações juvenis com um background mais diversificado, como os Ventos da Líria ou os Comcordas.               

Na semana em que os Velha Gaiteira (trance rural orgânico) e os Waterflies (etno-jazz experimental) deram a conhecer os seus discos de estreia - cada qual com uma personalidade forte, atenção profunda às suas influências ou raízes, universo sonoro único e um público fiel crescente -, estou em crer que uma nova e promissora etapa se inaugura no panorama musical albicastrense.

Graças às novas ferramentas de produção e divulgação do seu trabalho - dos estúdios caseiros às redes sociais -, hoje estas novas formações já não estão dependentes do rótulo geográfico e podem concentrar-se mais na sua energia criativa e obter melhores resultados com menos meios. Contudo, com uma plateia infinita à distância de um clique e com gostos e atenções cada vez mais fragmentados, mais difícil se torna diferenciarem-se e chegarem ao patamar mínimo do reconhecimento público, seja ele regional, nacional ou mesmo internacional.


Mas quer Velha Gaiteira, quer Waterflies (nem outra coisa se espera) têm capacidade para crescer, melhorar e afirmar-se dentro e fora de portas. Independentemente da existência ou não de pontos em comum, há pelo menos algo que estes e outros grupos da cidade que entretanto estejam a dar os primeiros passos partilham, para lá da frescura juvenil e acústica e da geografia e realidade temporal. Uma espécie de white('s)tone diria (o raia tone reinventado), isto porque os rótulos e/ou conceitos, tal como o envelhecer, são um dos grandes vícios, também da indústria musical.

Jorge Costa

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A folk urbana dos Dazkarieh

A banda combina folk europeia e tradição oral portuguesa com rock e temas próprios numa alquimia ora expansiva, ora intimista

O grupo liga voz e instrumentos tradicionais ou modernos
(imagens
: Jorge Costa/Multipistas, Carlos Nascimento)

A impureza sonora dos Dazkarieh poderá não agradar a alguns etnomusicólogos, mas acompanha a tendência global de cada vez mais se cruzarem diferentes sensibilidades e influências. Criada em 1999 por três amigos - Filipe Neves, José Oliveira e Vasco Ribeiro Casais – que já tocavam juntos, a banda lisboeta viaja pela diversidade musical do planeta, cruzando géneros e instrumentos de todo o mundo: das percussões africanas e árabes aos cordofones mediterrânicos, sem esquecer as referências tradicionais da cultura sueca e irlandesa.

“Quando surgiu, a ideia era simplesmente fazer música com instrumentos acústicos, assegura ao MULTIPISTAS - MÚSICAS DO MUNDO Vasco Ribeiro Casais, um dos fundadores do grupo, e até então mais ligado ao rock e à música clássica.Depois é que começámos a descobrir a música tradicional de vários países, desde África e Médio Oriente à Europa e Galiza, acrescenta o músico. A parte portuguesa só começámos a descobrir mais tarde”.

As vocalizações deram lugar aos temas em português

Depois da aposta nos originais cantados em "dazkariano"e nas sonoridades étnicas de inspiração europeia, africana, árabe ou brasileira, o grupo (chegaram a ser uma dezena de músicos) concentrou-se nas canções em português e na recriação de melodias tradicionais recolhidas de Trás-os-Montes ao Algarve, incluindo Madeira e Açores.

“As músicas eram vocalizos onde não havia propriamente uma letra, mas com o tempo começou-se a pensar que já que se estavam a escrever letras numa língua imaginária, porque não escrever poemas em português. E a voz, apesar de ser um instrumento, começou a servir também como um meio para divulgar outro tipo de mensagem, explica Joana Negrão, que acompanha os Dazkarieh desde 2006. Começámos a procurar músicas da tradição oral portuguesa com as quais nos identificássemos e a trabalhar muito esse tipo de repertório, em conjunto com as nossas próprias composições”, refere a vocalista da banda.

A acústica dos instrumentos é explorada até ao limite

Em palco, os Dazkarieh exploram os limites físicos da
nyckelharpa ou do “bouzoukão” (guitarra portuguesa com a forma de bouzouki e cordas de baixo). Instrumentos acústicos alterados – veja-se o caso da bateria, com pratos partidos para se obter um som mais sujo, ou do adufe, percutido com baquetas - ou tocados de forma enérgica e pouco convencional, lado a lado com clássicos da música tradicional como o cavaquinho, a gaita-de-foles transmontana, a sanfona ou o bandolim (aqui com dez cordas).

“Começámos a fazer o que víamos e ouvíamos, porque não nos identificávamos muito com a música tradicional que se fazia em Portugal. Depois fomos ouvindo grupos que já tinham feito esse trabalho com a música deles e tentámos fazer música tradicional não como ela era feita antigamente mas com uma visão mais urbana”, diz Vasco Casais. Fazemos a música que nós sentimos à nossa maneira, e o que temos feito é pegar nas músicas portuguesas de tradição oral e dar-lhe o nosso gosto, trazê-la para os nossos dias”.

 
Na folk dos dos Dazkarieh também há lugar para o rock

À margem de fórmulas e rótulos, os Dazkarieh combinam a folk com o rock e a tradição oral portuguesa, juntando-lhe composições próprias e reinventado-a à luz dos seus gostos e à margem de folclorismos.

O resultado é uma alquimia ora expansiva, ora intimista, num cruzamento de hemisférios sonoros a que se juntam também instrumentos – adufe - e temas característicos da
Beira Baixa – “Senhora da Azenha”, “Meninas Vamos à Murta” ou “Cantiga Bailada” (a que eles chamaram “Eras Tão Bonita”) - ou grupos da região como os Velha Gaiteira, que a 10 de Outubro também subiram ao palco na décima edição do Entrelaços – Festival Internacional de Música Tradicional/Folk de Castelo Branco, evento onde os Dazkarieh já tinham estado em 2002.

“O grupo já passou por muitas fases, associadas mais ao gótico, à folk celta ou à world music, e neste momento sentimos que não fazemos parte de nenhum desses rótulos, mas que criámos um som único que é nosso, reitera Joana Negrão. E isso dá-nos a nossa própria identidade sonora”.

O grupo combina música tradicional e composições próprias

As mudanças na banda e o contacto com outras culturas reflectem-se nos trabalhos editados - das experimentações dos dois primeiros ao cruzamento de temas próprios e versões populares nos dois seguintes - e nas inquietações sonoras dos Dazkarieh, este ano uma das cem bandas candidatas aos nomeados para o
Best Portuguese Act nos MTV Europe Music Awards. Por sua vez, na Alemanha, em 2008, foram nomeados na categoria de melhor banda do ano num importante prémio folk.

Eles exploram influências urbanas, transportando este e outros géneros da chamada música do mundo
para ambientes mais contemporâneos como o rock. Forma de levarem essa cultura às gerações mais novas e ao público urbano.

“Temos sempre uma vertente mágica quando fazemos música. Na parte musical nunca fazemos concessões. É mesmo aquilo que sentimos e queremos fazer, recorda Vasco Casais. “Cada vez que vamos ao palco damos aquilo que queremos, e Dazkarieh é isso mesmo. Claro que nos interessa que as pessoas gostem da nossa música, mas estar bem connosco é a nossa prioridade”, esclarece o jovem, que actualmente diz ouvir sobretudo The Prodigy e The John Butler Trio.

Sons intimistas convivem com sonoridades efusivas

Viagem onde Vasco Ribeiro Casais
(nyckelharpa, bouzouki, gaita-de-foles, flauta), Luís Peixoto (bouzouki, bandolim, cavaquinho, sanfona), Joana Negrão (voz, gaita-de-foles, adufe, pandeireta) e André Silva (bateria) cruzam letras - grande parte do escritor Tiago Torres da Silva - e composições próprias com recriações de temas populares da tradição oral, à semelhança do que fazem formações como os Uxu Kalhus, Mandrágora, Chuchurumel, Diabo a Sete ou Lúmen. Mundos complementares com que se enche o caldeirão sonoro dazkariano, sinónimo da energia que o grupo procura transmitir ao público.

“Dazkarieh continua a ser uma banda que tem um lado muito expansivo, mas também muito intimista. Isso mantém-se desde o início, apesar de o som ter mudado, lembra Joana Negrão. O nome Dazkarieh foi uma mistura de sons que ia na linha de não criar nada que tivesse a ver com algo em específico, mas que simbolizasse o grupo e a música que o este faz. E hoje em dia, apesar de soar um pouco estranho, achamos que é uma coisa única, e Dazkarieh representa tudo isso”.

A experimentação é uma imagem de marca do grupo

O resultado poderá ser chamado de música urbana de fusão, imagem de marca daquele que é um dos mais conhecidos grupos do género em Portugal e uma das bandas portuguesas com maior presença no estrangeiro. Nos últimos anos, os Dazkarieh atravessaram a Europa, com destaque para a Alemanha, e países como Cabo Verde, Canadá, México, Malásia e Singapura, acabando por dar mais concertos no estrangeiro que em Portugal.

Dez anos de experimentação em que os Dazkarieh têm vindo a procurar e interligar
timbres, harmonias e ritmos por vezes inesperados, mesmo na sua paleta. Uma sonoridade cada vez mais eléctrica, mas onde há sempre lugar para o acústico.

 
Os Dazkarieh partilham o ritmo com os Velha Gaiteira
Discografia:
2002 – “Dazkarieh”
2004 – “Dazkarieh – Espanta Espíritos” (edição distribuída com o jornal Blitz + edição de luxo com capa em madeira) 
2005 – “Dazkarieh” (compilação com três temas inéditos, distribuída com o livro “Eldest”, de Chistopher Paolini) 
2006 – “Incógnita Alquímia” (edição normal + edição de luxo com capa em cortiça) 
2009 – “Hemisférios”